O mito
sempre fez parte da literatura amazônica. A região que comporta a maior floresta
tropical do mundo, desde sua conquista, pelos europeus, é alvo de lendas e
fantasias a respeito de suas riquezas naturais e dos nativos que nela
viviam.
Dentre os mitos mais instigantes está o das amazonas,
guerreiras indígenas que viviam em grupos alheios aos homens e que, segundo
relatos, tinham um dos seios cortados. Essa “república das mulheres”, para
utilizar o conceito de Antônio Esteves em seu livro A ocupação da Amazônia,
atraiu muitos aventureiros à Amazônia. Sabe-se que até o astrônomo francês
Charles Marie de La Condamine, membro da Academia de Ciência de Paris, foi
seduzido pela lenda, a ponto de pesquisar, entre os nativos, o local onde viviam
essas mulheres.
Os conquistadores, muitas das vezes, motivaram-se
exclusivamente em lendas ao virem à Amazônia, o caso das minas de El Dourado é
apenas um exemplo. O certo é que os mitos têm a capacidade de estimular
comportamentos e cimentar valores.
O Acre também tem os seus mitos. Mitos que até hoje são
cultivados por políticos e empregados com o fim de formar uma identidade
cultural entre os membros das diferentes grupos sociais. A opção por narrar a
história da anexação do Acre ao Brasil de forma épica e fantástica – em que o
Acre é criado sob a égide de um grande herói, Plácido de Castro, e a identidade
dos acreanos é formada sob a influência do patriotismo dos seringueiros - é a
base do mito fundador Acreano. De acordo com o mito, o povo acreano deveria se
orgulhar por ter como marca de “acreanidade”, tão glorioso passado.
A historiografia oficial é o principal veículo de difusão do mito fundador sobre o Acre. A serviço dos detentores do poder político-econômico, essa historiografia estabelece “sentidos” sobre o passado, próprios de um grupo social, como sendo universais. Ou seja, mostra como verdade algo que é apenas uma versão do fato histórico. Nega a possibilidade de novas interpretações e sufoca a polissemia, característica nata da escrita historiográfica. Não significa, no entanto, que a versão oficial consiste em mentiras. Mas que deve ser encarada como uma representação do acontecimento histórico, baseada na visão de mundo da classe dominante.
A grande questão é desencantar a afirmação de que no
Acre houve um passado glorioso, patriótico e revolucionário. Precisa-se divulgar
também as “leituras não autorizadas” sobre o passado acreano. O cidadão tem o
direito de conhecer a multiplicidade de versões sobre a Revolução Acreana. O
patriotismo e o termo revolução podem ter sido usados para dissimular a ganância
dos “brasileiros do Acre” pelos lucros “astronômicos” da borracha e encobrir
diversos crimes cometidos pelos Acreanos: assassinatos, sonegação de impostos,
invasão de terras estrangeiras etc. Será que os humildes seringueiros,
semi-escravizados pelo barracão teriam se identificado com o “inferno verde” a
ponto de irem a guerra por patriotismo? Teria sido Plácido de Castro o GRANDE
responsável pela anexação do Acre ao Brasil? Percebemos que há muitas questões
que não são mencionadas pelos escribas do poder.
Houve um processo de instauração do sentido único. A
versão oficial não é natural, ela foi historicamente legitimada e
ideologicamente construída por grupos sociais que ambicionavam a hegemonia.
Hoje, o mito é alimentado por governos com tendências autoritárias. O discurso
fundador cria uma dependência entre os cidadãos e os seus heróis atuais, os
políticos; transmite a ideia de um Estado sem conflitos sociais; forja uma
unidade social em torno de um projeto político.
Atualmente, percebe-se que a ideia de confiar o destino
da sociedade a heróis, virou uma política de governo. Por isso reaviva-se o
culto a personagens como Plácido de Castro e Chico Mendes. A elite inventa os
“grandes homens” para depois se dizer continuadores das lutas deles. Através do
mito fundador cria-se um ambiente político de cooperação e de passividade diante
dos desmandos praticados. O povo deixa de se ver como agente histórico de
mudanças.
A história é escrita por pessoas que vivem intensamente
relações de poder em todas as áreas da vida. Impossível é, para um historiador,
escrever sem propagar os juízos de valor do grupo social a que pertence. A
história não é neutra, muito menos imparcial. Os mitos estão em todas as partes,
inclusive em muitos livros de história considerados científicos. Crer em
amazonas guerreiras que viviam na “república das mulheres” por esses rincões não
é um mal maior que crer no mito fundador acreano. Em ambos os casos, a história
e a ficção se confundem. É a ciência pedindo auxílio à literatura para
justificar uma prática opressora. Desmistificar a historiografia oficial é
destruir um dos maiores instrumentos de dominação em nosso Estado. “A escrita em
História em nada se diferencia do gênero literário” Peter Burke, historiador
inglês.
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