sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

O mito fundador do Acre

O mito sempre fez parte da literatura amazônica. A região que comporta a maior floresta tropical do mundo, desde sua conquista, pelos europeus, é alvo de lendas e fantasias a respeito de suas riquezas naturais e dos nativos que nela viviam. 

Dentre os mitos mais instigantes está o das amazonas, guerreiras indígenas que viviam em grupos alheios aos homens e que, segundo relatos, tinham um dos seios cortados. Essa “república das mulheres”, para utilizar o conceito de Antônio Esteves em seu livro A ocupação da Amazônia, atraiu muitos aventureiros à Amazônia. Sabe-se que até o astrônomo francês Charles Marie de La Condamine, membro da Academia de Ciência de Paris, foi seduzido pela lenda, a ponto de pesquisar, entre os nativos, o local onde viviam essas mulheres.

Os conquistadores, muitas das vezes, motivaram-se exclusivamente em lendas ao virem à Amazônia, o caso das minas de El Dourado é apenas um exemplo. O certo é que os mitos têm a capacidade de estimular comportamentos e cimentar valores.

O Acre também tem os seus mitos. Mitos que até hoje são cultivados por políticos e empregados com o fim de formar uma identidade cultural entre os membros das diferentes grupos sociais. A opção por narrar a história da anexação do Acre ao Brasil de forma épica e fantástica – em que o Acre é criado sob a égide de um grande herói, Plácido de Castro, e a identidade dos acreanos é formada sob a influência do patriotismo dos seringueiros - é a base do mito fundador Acreano. De acordo com o mito, o povo acreano deveria se orgulhar por ter como marca de “acreanidade”, tão glorioso passado.


A historiografia oficial é o principal veículo de difusão do mito fundador sobre o Acre. A serviço dos detentores do poder político-econômico, essa historiografia estabelece “sentidos” sobre o passado, próprios de um grupo social, como sendo universais. Ou seja, mostra como verdade algo que é apenas uma versão do fato histórico. Nega a possibilidade de novas interpretações e sufoca a polissemia, característica nata da escrita historiográfica. Não significa, no entanto, que a versão oficial consiste em mentiras. Mas que deve ser encarada como uma representação do acontecimento histórico, baseada na visão de mundo da classe dominante.

A grande questão é desencantar a afirmação de que no Acre houve um passado glorioso, patriótico e revolucionário. Precisa-se divulgar também as “leituras não autorizadas” sobre o passado acreano. O cidadão tem o direito de conhecer a multiplicidade de versões sobre a Revolução Acreana. O patriotismo e o termo revolução podem ter sido usados para dissimular a ganância dos “brasileiros do Acre” pelos lucros “astronômicos” da borracha e encobrir diversos crimes cometidos pelos Acreanos: assassinatos, sonegação de impostos, invasão de terras estrangeiras etc. Será que os humildes seringueiros, semi-escravizados pelo barracão teriam se identificado com o “inferno verde” a ponto de irem a guerra por patriotismo? Teria sido Plácido de Castro o GRANDE responsável pela anexação do Acre ao Brasil? Percebemos que há muitas questões que não são mencionadas pelos escribas do poder.

Houve um processo de instauração do sentido único. A versão oficial não é natural, ela foi historicamente legitimada e ideologicamente construída por grupos sociais que ambicionavam a hegemonia. Hoje, o mito é alimentado por governos com tendências autoritárias. O discurso fundador cria uma dependência entre os cidadãos e os seus heróis atuais, os políticos; transmite a ideia de um Estado sem conflitos sociais; forja uma unidade social em torno de um projeto político.

Atualmente, percebe-se que a ideia de confiar o destino da sociedade a heróis, virou uma política de governo. Por isso reaviva-se o culto a personagens como Plácido de Castro e Chico Mendes. A elite inventa os “grandes homens” para depois se dizer continuadores das lutas deles. Através do mito fundador cria-se um ambiente político de cooperação e de passividade diante dos desmandos praticados. O povo deixa de se ver como agente histórico de mudanças.

A história é escrita por pessoas que vivem intensamente relações de poder em todas as áreas da vida. Impossível é, para um historiador, escrever sem propagar os juízos de valor do grupo social a que pertence. A história não é neutra, muito menos imparcial. Os mitos estão em todas as partes, inclusive em muitos livros de história considerados científicos. Crer em amazonas guerreiras que viviam na “república das mulheres” por esses rincões não é um mal maior que crer no mito fundador acreano. Em ambos os casos, a história e a ficção se confundem. É a ciência pedindo auxílio à literatura para justificar uma prática opressora. Desmistificar a historiografia oficial é destruir um dos maiores instrumentos de dominação em nosso Estado. “A escrita em História em nada se diferencia do gênero literário” Peter Burke, historiador inglês.

*Egina Carli de Araújo Rodrigues Carneiro é Professora de história, pós-graduada em psicopedagogia pela IVE e pós-graduanda em História da Amazônia pela UFAC

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