O xadrez diplomático e militar do Acre
Para fazer parte do território brasileiro, o Acre viveu uma saga diplomática e militar que opôs Brasil e Bolívia e incluiu a participação de uma empresa de capital multinacional interessada no látex da região. Foi por intermédio da Questão do Acre e de outras questões de fronteiras, que o Brasil revelou seu diplomata-maior, o barão do Rio Branco. Aristocrata, agraciado pelo Império com o título de barão, José Maria da Silva Paranhos Júnior, foi o grande símbolo da diplomacia da República.
por Francisco Bento da Silva e Gérson Rodrigues Albuquerque
O escritor Euclides da Cunha, que esteve na região acreana em 1905, a serviço do governo brasileiro, comenta em seu livro À margem da História que o Acre era, por volta de 1870, uma vaga expressão geográfica tornando-se, no início do século XX, um lugar de cem mil almas ressuscitadas composta, principalmente, de nordestinos fugidos da seca nas décadas anteriores. Certamente havia algo mais de atrativo na vinda de uma leva imensa desses homens para a Amazônia e para o Acre, que ia além da aridez do sertão.
Por que uma região que durante tanto tempo foi “desconhecida” ou “ignorada”, transformou-se, três décadas depois, em uma área de disputa armada e diplomática entre brasileiros e bolivianos? Do final do século XIX ao início do XX, todos comentavam amiúde, nos principais salões diplomáticos e financeiros do mundo, A questão do Acre. Para compreender melhor essa querela é necessário contar algumas histórias sobre o processo de ocupação da região.
A região da Amazônia acreana era rica em seringueiras (Hevea brasiliensis), de onde se extraía o látex, que já tinha suas propriedades elásticas conhecidas pelos indígenas antes mesmo da chegada dos exploradores portugueses e espanhóis à região. Com a descoberta do processo de vulcanização por Charles Goodyear, em 1839, a borracha natural passou a ser fundamental na produção de vários artefatos engendrados pelo processo de industrialização do final do século XIX, principalmente os de aplicação na então nascente indústria automobilística.
Assim, passou a ocorrer uma busca crescente por parte das indústrias européias e americanas pela matéria-prima, abundante na Amazônia, para onde rumaram uma miríade de seres humanos e interesses articulados às demandas do capital internacional. O boom foi tão espetacular que, segundo o historiador amazonense Artur Cézar Ferreira Reis, na obra O seringal e o seringueiro, em 1827 o Brasil exportava apenas 31 toneladas de borracha natural; cinco décadas depois esse número subiu para 16 mil toneladas.
Embora o Tratado de Madri, arbitrado em 1750, tenha procurado regulamentar as possessões hispano-portuguesas nas Américas, o reino espanhol admitia, através do Uti possidetis, a presença portuguesa na Amazônia. No caso da região do futuro Acre, havia a “dança” das linhas limítrofes, mas, tacitamente, a região era reconhecida como pertencente à Bolívia. Esta, em 1825, adquiriu sua independência da possessão espanhola do Alto Peru. Porém, as idas e vindas de outros acordos posteriores fizeram com que os limites continuassem imprecisos e provocassem dubiedades interpretativas. Com a celebração do Tratado de Ayacucho, em 1867, a região do Acre foi reconhecida e ratificada, novamente, como pertencente à nação boliviana. No entanto, a Bolívia tinha enormes dificuldades em se apossar da região acreana, que já era foco de atração para numerosos contingentes de brasileiros, deslocados para esse novo Eldorado com o objetivo de trabalhar na exploração do látex.
Somente em 1899, já com a forte presença de brasileiros em terras do Acre, é que a Bolívia instala um posto de controle fiscal no vilarejo de Puerto Alonso para a cobrança de impostos advindos da produção de borracha. A maior parte dessa produção era enviada, por via fluvial, até as cidades de Manaus e Belém que, por sua vez, repassavam mercadorias e mantimentos para abastecer os vastos seringais.
Decorridos cinco meses da instalação do entreposto fiscal, o delegado boliviano Moisés Santivanez e os demais representantes do Estado boliviano foram expulsos de Puerto Alonso por brasileiros ligados à extração de seringa, atendendo às pretensões dos grandes proprietários de seringais, sequiosos por manter o controle sobre as riquezas locais, liderados pelo advogado José de Carvalho, interlocutor dos interesses do estado do Amazonas, financiador do levante. Um mês depois, o espanhol Luiz Gálvez, também com o apoio do governo amazonense, proclamaria o Estado Independente do Acre, tornando-se presidente da nova nação. Pouco tempo depois, em março de 1900, o governo brasileiro interviria para restabelecer os direitos legais dos bolivianos sobre o Acre.
Companhia arrenda o Acre
Após esse incidente, o ministro plenipotenciário da Bolívia, dom Félix Aramayo, que servia em Londres, viu a necessidade de uma presença mais vigorosa da nação boliviana na região. A saída pensada foi arrendar o Acre para uma empresa de capital privado internacional, inspirado nas chamadas Chartered Company, modelo implantado nas colônias européias existentes na África e na Ásia. Dessa forma, o Acre passaria a ser administrado por uma companhia de capital estrangeiro que estivesse interessada em arrendar o, então, território boliviano, ocupado, principalmente, por brasileiros. O modelo foi pensado pela Bolívia como uma saída para que o país andino não perdesse a região do Acre. A empreitada de Félix Aramayo, inicialmente, não encontrou o sucesso esperado. Somente depois de muitos contatos e articulações na Europa e nos EUA, foi criado, em 14 de julho de 1901, o Bolivian Syndicate (syndicate, em inglês, tem o sentido de cartel e não de sindicato, como no Brasil), um conglomerado anglo-americano com capital de 500 mil libras esterlinas, sediado na cidade de Nova York, que tinha como diretor Martin Conway. Entre os acionistas dessa chartered company encontrava-se até um sobrinho do presidente americano Franklin Roosevelt, e a famosa firma Vanderbilt, como ressalta o historiador Leandro Tocantins na obra Formação Histórica do Acre.
O ponto principal do contrato era o arrendamento, por 30 anos, da região ascreana, pelo qual 60% dos lucros da exploração ficavam com a Bolívia e os 40% restantes com o Bolivian Syndicate. Os lucros futuros viriam, principalmente, da cobrança de impostos sobre a borracha produzida nos seringais acreanos. Além disso, seria assegurada ao cartel a faculdade do uso de força militar para garantir seus direitos na região acreana, e a opção preferencial de compra do território arrendado, se assim desejasse.
As discussões e as bases do acordo foram delineadas meio às escondidas, para não melindrar o Brasil e o Peru, vizinhos fronteiriços, que tinham pendências de limites territoriais com a Bolívia. Mesmo tudo isso ocorrendo nos bastidores diplomáticos, os rumores preocupantes do acordo circulavam junto aos representantes peruanos e brasileiros nos EUA, Europa e Bolívia que, evidentemente, tinham interesse no assunto. Depois de assinado, o contrato foi encaminhado para que o Congresso Nacional Boliviano aprovasse as cláusulas acordadas entre o ministro Félix Aramayo e os acionistas anglo-americanos. No entanto, internamente, havia oposição ao acordo, com muitos parlamentares bolivianos se manifestando contrários ao documento, também conhecido como “Contrato Aramayo”, principalmente, os adversários do ministro Félix Aramayo, prestigiado diplomata e rico industrial.
Foi, então, criada no Congresso boliviano, a Comissão de Fazenda e Indústria com o objetivo de analisar e dar um parecer sobre o arrendamento contratual do Acre ao Bolivian Syndicate. Após as análises, uma das conclusões apontadas pelos membros da comissão foi que era impossível à Bolívia conservar o território do Acre sem o aporte de capitais externos, pois faltava uma presença efetiva do Estado boliviano e, também, uma base demográfica nacional na região onde a ocupação era, basicamente, de brasileiros. Esses fatores eram, ainda, intensificados pelas dificuldades encontradas pelos bolivianos para descer o altiplano até o vale amazônico. Enfim, as dificuldades da Bolívia eram congênitas e enormes diante dos dilemas postos pela questão acreana.
O arrendamento parecia ser a saída menos ruim, como reporta um trecho do relatório da comissão, citado por Leandro Tocantins, ao afirmar que desgraciadamente em la actualidad no se ofrece ninguno otro medio, ni como probabilidad lejana. Após discussões, o relatório foi aprovado no dia 17 de dezembro de 1901, cinco meses depois da assinatura do contrato entre o governo boliviano e o Bolivian Syndicate.
Além das já existentes querelas diplomáticas entre Brasil e Bolívia, a efetivação do acordo trazia a perspectiva clara da “ocupação” do Acre pelos representantes do Bolivian Syndicate, isto é, o prenúncio da exaltação e acirramento entre aqueles que eram conhecidos como “brasileiros do Acre” e os bolivianos. O governo brasileiro, através dos diplomatas Joaquim Nabuco (Roma/Londres), Joaquim F. de Assis Brasil (Washington) e Barão do Rio Branco (Berlim), empreendeu uma campanha para desacreditar o Bolivian Syndicate junto a governos e grupos financeiros que poderiam vir a se associar ao cartel.
Com a nomeação do Barão do Rio Branco para o Ministério das Relações Exteriores, em dezembro de 1902, o ex-embaixador na Alemanha passou a articular de maneira mais incisiva uma solução diplomática para a “Questão acreana” e a ruptura do contrato com a companhia internacional. Após renhidos embates diplomáticos entre as partes envolvidas, o Bolivian Syndicate resolve, em fevereiro de 1903, abdicar do contrato firmado com a Bolívia, ao ser indenizado pelo governo brasileiro em 114 mil libras esterlinas.
Contribuiu para esse desfecho o fato de quase um ano após o Congresso boliviano ter aprovado o acordo, terem se iniciado “novos” conflitos armados entre brasileiros e bolivianos. Pelo lado brasileiro, atendendo aos propósitos formulados pelos grandes seringalistas, financiados pelo governo do Amazonas, que mantinha seus interesses econômicos pela borracha extraída das florestas acreanas, o comando das operações de guerra estava a cargo do ex-militar gaúcho José Plácido de Castro: este contava com uma força militar composta por trabalhadores extrativistas (seringueiros), a grande maioria “recrutada” à força ou sob o engodo de receberem recompensas materiais, incluindo a posse de seringais, caso saíssem vencedores do conflito. As evidências históricas e a situação de miséria em que ficaram os conhecidos “veteranos” da “Revolução Acreana” apontam que tais recompensas nunca se efetivaram.
Após vários combates em que, no geral, os brasileiros saíram vitoriosos, em janeiro de 1903 o governo da República brasileira, temendo uma retomada dos conflitos, enviou para o Acre um destacamento militar comandado pelo general Olímpio da Silveira para manter o “controle da situação” e levar a questão para o âmbito diplomático. A partir do momento em que terminou o conflito armado entre brasileiros e bolivianos até a assinatura daquele que ficou conhecido como “Tratado de Petrópolis”, o Acre foi dividido em duas zonas administrativas: o Acre Setentrional, governado pelo general Olímpio da Silveira e o Acre Meridional, governado por Plácido de Castro.
FIQUE POR DENTRO
Tratado de Madri (13/1/1750) – Estabelecia o principio do Uti possidetis, herança ainda do Tratado de Tordesilhas. Esta cláusula beneficiava de forma preponderante os interesses de luso-brasileiros em detrimento aos dos espanhóis, que aceitam-no em troca do controle da Bacia do rio da Prata, região de maior interesse econômico à época. Com isto, Portugal legalizou seu avanço sobre os territórios espanhóis para a região amazônica.
Tratado de Ayacucho (27/4/1867) – Tratado firmado entre a Bolívia e o Brasil para delimitar as fronteiras entre os dois países. Devido à presença de brasileiros nas bacias dos rios Madeira, Purus e Juruá, o Brasil consegue empurrar os seus limites fronteiriços até a nascente do rio Javari. Como na época da assinatura do tratado não se sabia exatamente onde nascia o rio Javari, surge desta indefinição a chamada “Questão acreana”, embora o Brasil reconhecesse esta região como formalmente boliviana.
Chartered Company – Eram as chamadas “companhias privilegiadas” que existiram nas colônias européias na Ásia e na África. Geralmente, por intermédio de uma carta de outorga, o Estado colonial permitia que companhias de capitais privados explorassem suas possessões distantes. A mais famosa de todas as chartered companies foi a Companhia das Índias Orientais.
Tratado de Petrópolis (17/11/1903) – Tratado assinado entre o Brasil e a Bolívia, logo após o término da chamada “Revolução acreana”, reconhecendo e incorporando o Acre ao território brasileiro. Um dos pontos do acordo estabelecia a construção, pelo governo brasileiro, da estrada de ferro Madeira-Mamoré e a indenização de 2 milhões de libras esterlinas ao governo boliviano.
Acre – Existem controvérsias sobre a origem do nome. Segundo alguns autores regionais, estaria ligado ao nome indígena wakuru, que era como a tribo apurinã chamava o atual rio Acre. Com a chegada dos exploradores à região, o nome foi se corrompendo em iquiri, aquiri, acri, até chegar ao termo Acre, seu topônimo atual.
Seringalista – Dono ou arrendatário do seringal, área produtora de borracha natural, e composto de várias colocações (unidade produtiva menor e local onde morava o seringueiro). A borracha era produzida a partir do látex extraído da árvore seringueira. A sede administrativa do seringal era chamada de barracão, que tinha entre outras finalidades fornecer mantimentos aos seringueiros em troca da borracha produzida.
Seringueiro – Trabalhador extrativista, subordinado ao seringalista, vivia na Colocação, localizada no interior (centro) dos seringais, responsável pelo trabalho de extração do látex das seringueiras para a produção de borracha.
CRONOLOGIA
1867
O governo imperial brasileiro reconhece o direito boliviano à posse da região do Acre. A linha de fronteira, entretanto, nunca foi demarcada.
1898
A Bolívia instala postos alfandegários na região, juridicamente boliviana, mas ocupada por brasileiros. Em seguida, envia uma delegação militar, expulsa três semanas depois pelos brasileiros.
1899
O governo boliviano estabelece uma estação alfandegária em Porto Alonso, na fronteira considerada legal entre Brasil e Bolívia. Em Manaus, manifestações populares contra o que consideravam usurpação estrangeira aos direitos brasileiros sobre o rico território da borracha. Os seringalistas expulsam as autoridades bolivianas de Porto Alonso. Formada junta revolucionária brasileira destinada a resistir à invasão de tropas da Bolívia. Em 14 de julho, o espanhol radicado no Brasil Luíz Gálvez Rodrigues de Árias proclama a República do Acre, para a qual se autonomeia presidente. A República do Acre dura menos de um ano, duramente atacada por forças bolivianas.
1900
O Brasil envia forças militares para devolver e garantir os direitos bolivianos sobre a região acreana. Uma expedição financiada pelo governo amazonense é derrotada pelos bolivianos na cidade de Porto Alonso.
1901
Governo boliviano arrenda o território do Acre ao Bolivian Syndicate, companhia colonial de capital americano, inglês e alemão. A empresa é encarregada de explorar a borracha da região e manter a ordem.
1902
O Bolivian Syndicate instala-se no Acre. Em resposta, a população brasileira da região promove novo levante armado, chefiado pelo gaúcho Plácido de Castro. Para a historiografia oficial, o dia 6 de junho é considerado o início da Revolução Acreana. Em outubro, as tropas bolivianas capitulam diante das forças rebeldes. No final do ano, o barão do Rio Branco é nomeado ministro das Relações Exteriores e o governo passa a considerar seriamente a incorporação da região conflagrada como possibilidade concreta.
1903
Plácido de Castro toma Porto Alonso em janeiro, após violentos combates. Bolivianos esperam uma intervenção americana em defesa do Bolivian Syndicate, mas o governo dos Estados Unidos descarta a idéia. Embora pertença à Bolívia, o Acre na realidade já é brasileiro. O barão do Rio Branco oferece indenização de 114 mil libras esterlinas ao Bolivian Syndicate, que se retira do país. A Bolívia volta a dialogar com o governo brasileiro e, em novembro, ambos os países assinam o Tratado de Petrópolis. Por esse tratado, o Brasil compromete-se a pagar indenização de 2 milhões de libras esterlinas ao governo boliviano e a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para auxiliar o escoamento das exportações bolivianas. A Bolívia, por sua vez, renuncia aos direitos sobre o Acre, que passa a integrar definitivamente o território brasileiro.
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